Hidrodiplomacia: o que é diplomacia da água?

Hidrodiplomacia: o que é diplomacia da água?

Hoje, 22 de março, Dia Mundial da Água, é fundamental compreendermos a importância do uso sustentável de um recurso que é fundamental para vida, que gera tensões e conflitos em todo o mundo, falar de hidrodiplomacia. Tamanha a relevância dessa discussão, que nas últimas décadas, Estados, organizações internacionais e diversos atores internacionais passaram a dedicar uma atenção específica, nascendo uma nova área da diplomacia, a hidrodiplomacia ou ainda diplomacia da água.

A hidrodiplomacia, conceito que entrelaça a gestão dos recursos hídricos com as práticas diplomáticas, se relaciona com os interesses nacionais e de corporações, surge como uma resposta essencial às crescentes tensões e desafios relacionados com seu uso e disponibilidade. Este campo emergente reflete a complexa interdependência entre Estados, sociedades e ecossistemas na busca por uma gestão sustentável e equitativa da água, recurso vital, mas cada vez mais escasso.

Historicamente, a água tem sido tanto uma fonte de cooperação quanto de conflito. A Convenção de Genebra sobre o Uso dos Cursos de Água Internacionais para Fins Fora da Navegação, de 1997, e a criação do Conselho Mundial da Água em 1996 são marcos na evolução da hidrodiplomacia, estabelecendo princípios para a cooperação transfronteiriça e o uso sustentável da água. Estes eventos sublinham a crescente compreensão internacional de que a segurança hídrica é intrinsecamente ligada à paz e segurança globais.

Importantes pesquisadores como Aaron Wolf e Ashok Swain têm destacado a capacidade da hidrodiplomacia de transformar conflitos potenciais em cooperação, demonstrando que, mesmo em regiões marcadas por tensões políticas, acordos sobre a água podem servir como mecanismos de construção de paz. Estudos realizados por esses e outros acadêmicos mostram que, ao longo das últimas décadas, a cooperação em questões hídricas tem sido muito mais comum do que o conflito, contrariando a noção de que a escassez de água leva inevitavelmente à disputa.

A importância emergente da hidrodiplomacia também é refletida nos desafios impostos pelas mudanças climáticas, que exacerbam a vulnerabilidade dos sistemas hídricos e aumentam a urgência de uma gestão cooperativa da água. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, com seu Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 6, visa garantir a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos, reforçando a necessidade de abordagens diplomáticas inovadoras para alcançar a segurança hídrica.

À medida que entramos em uma era marcada pela incerteza climática e pela competição por recursos limitados, a hidrodiplomacia oferece um caminho para mitigar tensões, promover o desenvolvimento sustentável e construir um futuro mais pacífico. Ao reunir nações, comunidades e indivíduos em torno da gestão compartilhada da água, ela representa uma oportunidade única para transformar um dos nossos desafios mais críticos em uma fonte de cooperação e esperança para o futuro.

Marcos Internacionais – Convenções e Acordos

Como já destacado, é fundamental a busca por solução pacífica, sendo as discussões no âmbito das organizações internacionais um outro aspecto da diplomacia da água. 

A Convenção da ONU sobre o Direito dos Usos dos Cursos de Água Internacionais para Fins Não Navegacionais, mais conhecida como a Convenção da Água da ONU de 1997, é um instrumento internacional fundamental na governança dos recursos hídricos transfronteiriços. Ela estabelece um quadro legal abrangente para promover a gestão e o uso sustentável da água, além de encorajar a cooperação entre países compartilhando bacias hidrográficas.

Princípios Fundamentais

A convenção é baseada em quatro princípios fundamentais:

  • Princípio da Utilização Equitativa e Razoável: Estabelece que todos os estados têm direito a uma utilização equitativa e razoável dos cursos de água internacionais.
  • Obrigação de Não Causar Dano Significativo: Os estados devem utilizar os cursos de água internacionais de maneira que não causem dano significativo aos outros estados ribeirinhos.
  • Obrigação de Notificar: Os estados devem notificar outros estados ribeirinhos sobre quaisquer projetos que possam ter efeitos adversos significativos sobre os cursos de água internacionais.
  • Proteção do Ecossistema: A convenção também sublinha a importância da proteção dos ecossistemas dos cursos de água internacionais.

Outros Acordos e Marcos Importantes

A Convenção da Água da ONU de 1997 é um pilar na governança global dos recursos hídricos, fornecendo um quadro legal para a cooperação e gestão sustentável dos cursos de água transfronteiriços. Junto com outros acordos e marcos importantes, ela representa um esforço coletivo para abordar os desafios complexos relacionados à água em um mundo cada vez mais interconectado.

Países que compartilham importantes bacias, como o rio Nilo ou o rio do Prata, ou aqueles que disputam recursos limitados, como os países do Rio Jordão, vão desenvolver acordos específicos, que precisam ser compreendidos à luz das disputas e desafios próprios.

Vão buscar nas discussões internacionais, nos acordos, convenções e declarações os princípios e práticas esperadas. Por isso, vale trazer outros acordos e marcos parte da diplomacia da água. 

  • Convenção de Ramsar (1971): Focada na conservação e no uso sustentável de zonas úmidas, esta convenção tem implicações importantes para a gestão dos recursos hídricos, especialmente em áreas transfronteiriças que abrangem zonas úmidas importantes.
  • Convenção sobre a Proteção e Utilização dos Cursos de Água Transfronteiriços e Lagos Internacionais (Convenção de Helsinque, 1992): Antes da convenção de 1997, a Convenção de Helsinque já estabelecia princípios para a cooperação entre países europeus na gestão de águas transfronteiriças.
  • Acordo sobre a Criação do Fundo para o Meio Ambiente Mundial (GEF, 1991): Embora não seja especificamente focado em água, o GEF fornece financiamento para projetos relacionados à biodiversidade, mudanças climáticas, águas internacionais, degradação do solo, camada de ozônio e poluentes orgânicos persistentes, muitos dos quais estão relacionados à gestão sustentável dos recursos hídricos.
  • Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (2015): Inclui o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 6, que visa “garantir a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos”, enfatizando a importância da gestão sustentável dos recursos hídricos em uma escala global.

Estes instrumentos enfatizam a necessidade de uma abordagem colaborativa e sustentável para a gestão dos recursos hídricos, crucial para a segurança hídrica global, a proteção do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável.

Hidrodiplomacia - Entendao que é diplomacia da água
Hidrodiplomacia – Entenda que é diplomacia da água

Cooperação Internacional em Hidrodiplomacia

A cooperação internacional tem se fortalecido e desempenha um papel fundamental na superação dos desafios hídricos em diversas partes do mundo envolvendo países, destacando a importância da diplomacia da água como uma ferramenta estratégica para a gestão sustentável da água, a prevenção de conflitos e a promoção da paz e da segurança internacional. A interdependência dos ecossistemas aquáticos, que muitas vezes transcendem fronteiras nacionais, exige uma abordagem colaborativa que reconheça a água como um recurso compartilhado e essencial para o desenvolvimento sustentável.

A Bacia do Rio Nilo

Na última década vimos o aumento das tensões no norte da África. A bacia do Rio Nilo, compartilhada por 11 países, considerada vital para a subsistência de milhões de pessoas, tem sido o cenário de intensas negociações e, por vezes, de disputas sobre o uso de suas águas. Um dos pontos mais críticos dessa hidrodiplomacia complexa envolve a construção da Grande Barragem do Renascimento Etíope (GERD, na sigla em inglês), iniciada pela Etiópia em 2011. Este projeto tem gerado preocupações significativas, especialmente no Egito e no Sudão, que dependem fortemente das águas do Nilo para suas necessidades agrícolas, potável e industrial.

A solução para a disputa sobre a GERD e o uso mais amplo das águas do Nilo depende da cooperação e do compromisso mútuo entre os países envolvidos. Algumas das abordagens sugeridas incluem:

  • Acordos Legais Vinculativos: Estabelecimento de um acordo legalmente vinculativo sobre o enchimento e operação da GERD que seja mutuamente benéfico e equitativo.
  • Mecanismos de Resolução de Conflitos: Criação de mecanismos de resolução de conflitos para gerir futuras disputas de forma eficaz.
  • Cooperação em Larga Escala: Ampliação da cooperação além da GERD, abordando questões de uso da água, desenvolvimento sustentável e gestão dos recursos hídricos em toda a bacia do Nilo.

Brasil e Hidrodiplomacia

Um dos exemplos mais notáveis de hidrodiplomacia é Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), assinado em 1978. Este tratado inclui oito países da bacia Amazônica: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. O TCA foi estabelecido com o objetivo de promover o desenvolvimento harmonioso da Bacia Amazônica, garantindo ao mesmo tempo a preservação do meio ambiente e o uso racional dos recursos naturais.

Tratado de Cooperação Amazônica: Um Marco na Hidrodiplomacia Regional

O TCA é considerado um marco na hidrodiplomacia na região da América Latina, por várias razões:

  • Gestão Compartilhada dos Recursos Hídricos: O tratado reconhece a importância de uma gestão integrada e sustentável dos recursos hídricos transfronteiriços, essencial para a conservação do ecossistema amazônico e o bem-estar das populações dependentes.
  • Cooperação Multinível: Além dos governos centrais, o TCA promove a cooperação entre diversos níveis de governo, incluindo estados e municípios da região amazônica, e também entre comunidades indígenas e locais, organizações não governamentais e o setor privado.
  • Pesquisa e Monitoramento Ambiental: Uma das áreas de cooperação dentro do TCA é a pesquisa e o monitoramento ambiental, que são essenciais para a gestão eficaz dos recursos hídricos e para enfrentar desafios como o desmatamento e a poluição da água.

Um dos resultados concretos da cooperação no âmbito do TCA é a criação da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), que atua como um fórum para o diálogo e a coordenação de políticas e ações conjuntas entre os países membros. A OTCA tem trabalhado em vários projetos, incluindo iniciativas de monitoramento da qualidade da água, programas de gestão sustentável da pesca e esforços para combater o tráfico ilegal de espécies selvagens.

Embora o TCA tenha estabelecido uma base sólida para a cooperação em questões hídricas e ambientais na Bacia Amazônica, enfrenta desafios significativos. Estes incluem a necessidade de maior financiamento para projetos de conservação e gestão sustentável, a harmonização de políticas ambientais entre os países membros e o aumento da pressão sobre os recursos hídricos devido ao crescimento populacional e ao desenvolvimento econômico.

OTCA dia da agua hidrodiplomacia

O sucesso contínuo da hidrodiplomacia na Bacia Amazônica dependerá da capacidade dos países membros de fortalecer a cooperação existente e enfrentar esses desafios de forma colaborativa. A experiência do TCA demonstra a importância da diplomacia da água não apenas para a gestão sustentável dos recursos hídricos, mas também para a promoção da paz, da segurança e do desenvolvimento regional sustentável.

Elementos Essenciais para a Cooperação Internacional

Como você pode observar, a hidrodiplomacia existe e se associa com outras questões, sendo um instrumento importante para a cooperação internacional. Para o seu sucesso e crescimento como prática da diplomacia, é fundamental que ela seja capaz de promover o diálogo, os ganhos mútuos, a inclusão de grupos importantes. 

Confira aspectos importantes da diplomacia da água:, 

Diálogo e Confiança

O sucesso da hidrodiplomacia repousa sobre o diálogo contínuo e a construção de confiança entre os países e de grupos diretamente impactados. A transparência e o compartilhamento de dados são fundamentais para entender as necessidades e preocupações de todas as partes envolvidas e para desenvolver soluções que sejam mutuamente benéficas.

Envolvimento de Múltiplos Atores

Além dos governos, a participação de organizações internacionais, ONGs, comunidades locais e o setor privado é crucial. Esses atores podem oferecer recursos, conhecimento técnico e apoio na implementação de projetos e políticas de gestão da água.

Adaptabilidade e Resiliência

As mudanças climáticas e outros fatores socioeconômicos exigem que as estratégias de cooperação sejam flexíveis e adaptáveis. A capacidade de ajustar acordos em resposta a condições em mudança é vital para a resiliência a longo prazo dos sistemas hídricos compartilhados.

Foco em Benefícios Mútuos

A cooperação efetiva requer o reconhecimento de que todos os países têm direitos legítimos e interesses sobre os recursos hídricos compartilhados. Estratégias que enfatizam benefícios mútuos e desenvolvimento conjunto podem ajudar a superar desconfianças e fomentar um ambiente de cooperação.

Considerações e ações necessárias

A hidropolítica emerge como um campo vital na interseção entre a gestão dos recursos hídricos e a diplomacia internacional, refletindo a complexidade e a importância estratégica da água em um mundo cada vez mais interconectado. À medida que a demanda por água doce aumenta devido ao crescimento populacional, à expansão econômica e aos impactos das mudanças climáticas, torna-se evidente que a água não é apenas um recurso natural, mas também um elemento crucial para a paz e a segurança globais.

A sustentabilidade no uso da água é, portanto, não apenas uma questão ambiental, mas também um desafio diplomático e de relações internacionais. O papel da hidrodiplomacia e dos profissionais de relações internacionais é fundamental para negociar soluções equitativas e sustentáveis para a gestão compartilhada dos recursos hídricos transfronteiriços. Eles são essenciais na mediação de interesses, na prevenção de conflitos e na promoção de uma cooperação que transcende fronteiras nacionais, culturais e econômicas.

Além disso, a hidropolítica destaca a necessidade de uma abordagem multidisciplinar que envolva não apenas políticos e diplomatas, mas também cientistas, gestores de recursos hídricos, comunidades locais e o setor privado. A cooperação internacional e o compartilhamento de conhecimento e tecnologias são indispensáveis para enfrentar os desafios da gestão sustentável da água.

A construção de um futuro sustentável requer uma mudança na maneira como percebemos e utilizamos a água. Isso implica reconhecer a água como um bem comum global e adotar práticas que garantam sua preservação e disponibilidade para as gerações futuras. Nesse sentido, a educação e a conscientização sobre a importância da conservação da água e da gestão sustentável são fundamentais, e o Dia Mundial da Água tem esse papel de lembrar da importância de discutirmos esse assunto.

Em suma, a hidropolítica nos convida a refletir sobre a interdependência dos estados e sociedades no que tange aos recursos hídricos e reforça a importância da diplomacia e da cooperação internacional como meios de resolver os desafios complexos associados à água. O profissional de relações internacionais, equipado com uma compreensão profunda das dinâmicas globais e das habilidades diplomáticas, desempenha um papel crucial neste processo. Unidos por um compromisso comum com a sustentabilidade, podemos garantir que a gestão dos recursos hídricos sirva como um pilar para a construção de um mundo mais pacífico, justo e sustentável.

Guilherme Bueno
Guilherme Bueno
esri.net.br

Sou analista de Relações Internacionais. Escolhi Relações Internacionais como minha profissão e sou diretor da ESRI e editor da Revista Relações Exteriores. Ministro cursos, realizo consultoria e negócios internacionais. Gosto de escrever e já publiquei algumas centenas de posts e análises.

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