Inteligência Artificial e Relações Internacionais: Riscos e Desafios

Inteligência Artificial e Relações Internacionais: Riscos e Desafios

Nos últimos anos, a Inteligência Artificial consolidou-se como um dos temas centrais da agenda de Relações Internacionais, presente nos discursos da Organização das Nações Unidas, nos encontros do BRICS e nas cúpulas do G20. Essa centralidade decorre das expectativas em torno de como a IA transformará a vida política, influenciará a condução dos conflitos e poderá alterar a base de poder dentro do sistema internacional, seja promovendo uma nova ordem, seja reforçando estruturas preexistentes.

Muito além de um campo técnico ou científico, a IA é hoje uma questão de política internacional. Seu desenvolvimento e uso estão diretamente associados aos Estados, que buscam ampliar sua aplicação na economia, na segurança, na diplomacia e na formulação de políticas públicas. A disputa tecnológica tornou-se uma dimensão do poder, e o controle sobre dados, algoritmos e infraestrutura digital passou a integrar a estratégia de atuação internacional de potências e coalizões emergentes.

O avanço das técnicas de aprendizado de máquina, análise de dados e processamento de linguagem natural ampliou de forma significativa a capacidade dos Estados e das organizações internacionais de compreender, prever e agir diante de fenômenos complexos. A IA permite processar volumes inéditos de informação, identificar padrões ocultos e apoiar decisões estratégicas com rapidez e precisão, o que tem implicações diretas sobre a forma como os países exercem influência e definem prioridades no cenário internacional.

Em contrapartida, o fator humano permanece indispensável. Em temas sensíveis, marcados por interesses políticos divergentes, como acordos comerciais, sanções econômicas ou negociações diplomáticas, a interpretação política continua a depender da experiência e do discernimento de quem compreende o contexto e as intenções dos atores envolvidos. A IA pode contribuir ao sintetizar dados e formular hipóteses, mas não substitui a leitura crítica que considera nuances, disputas narrativas e percepções de poder. Em diplomacia, o que é relevante para um Estado pode ser irrelevante, ou até ameaçador, para outro.

Essa tensão revela o caráter ambíguo da Inteligência Artificial: instrumento de apoio e, ao mesmo tempo, de potencial distorção. O uso intensivo de algoritmos e sistemas automatizados cria novos dilemas éticos e políticos, especialmente diante de fenômenos como vigilância digital, manipulação de dados, disseminação de desinformação e ampliação das desigualdades tecnológicas. O domínio da IA, portanto, não se limita à inovação, pois redefine a própria estrutura do poder internacional.

Assim como a energia nuclear no século XX e a internet no início do século XXI, a Inteligência Artificial representa uma transformação profunda nas relações entre soberania, segurança e cooperação. Ela altera as bases do sistema internacional, influencia a distribuição de poder e desafia as instituições multilaterais a se adaptarem a uma nova lógica. Os Estados que souberem compreender seus potenciais e riscos estarão mais bem preparados para moldar a ordem tecnológica em consolidação, onde conhecimento, dados e a capacidade de decisão automatizada se tornam componentes decisivos da política internacional.

a laptop computer sitting on top of a table
Photo by Deng Xiang on Unsplash

A Inteligência Artificial como Ferramenta de Poder Internacional

A competição pela liderança em Inteligência Artificial tornou-se um dos principais vetores da disputa de poder entre as grandes potências. A corrida tecnológica envolve não apenas inovação e produtividade, mas também controle sobre dados, infraestrutura digital e padrões normativos que definirão o funcionamento das economias e das instituições internacionais nas próximas décadas.

Os Estados Unidos, a China e a União Europeia adotam estratégias distintas para posicionar-se nesse cenário.

Nos Estados Unidos, a IA é tratada como ativo estratégico nacional, com forte ligação entre o setor privado e a área de defesa. O governo norte-americano vê a tecnologia como instrumento essencial para a manutenção da superioridade militar e da capacidade de influência política, além de enfatizar a cooperação com aliados em torno de princípios democráticos e de uso responsável da tecnologia.

A China, por sua vez, incorporou a IA a seu projeto de expansão internacional. O ‘New Generation Artificial Intelligence Development Plan’ (2017), de 2017, estabelece a meta de liderança mundial até 2030 e vincula a tecnologia à chamada Rota da Seda Digital, integrando empresas e centros de pesquisa em diferentes regiões do mundo. A estratégia chinesa combina política industrial, segurança nacional e diplomacia tecnológica, reforçando sua presença em áreas como infraestrutura, comunicação e cidades inteligentes.

A União Europeia segue um caminho distinto, priorizando uma abordagem ética e regulatória. A criação do AI Act e dos princípios de IA confiável reflete a tentativa de equilibrar inovação e proteção de direitos, buscando um modelo de governança que assegure transparência, segurança e responsabilidade no uso dos algoritmos.

Essas diferentes estratégias demonstram que a IA se tornou um novo eixo de poder internacional. O domínio tecnológico tende a determinar não apenas o desempenho econômico, mas também a capacidade de influência diplomática e de projeção estratégica dos Estados. A concentração de recursos em poucos centros de inovação reforça assimetrias já existentes e amplia a dependência tecnológica de países periféricos, desafiando os princípios de soberania e autonomia decisória.

Nesse contexto, a política externa passa a ter papel decisivo na construção de normas, parcerias e mecanismos de governança que orientem o uso da Inteligência Artificial. A diplomacia contemporânea precisa lidar com um ambiente em que o poder não se mede apenas por força militar ou capacidade econômica, mas também pela habilidade de controlar dados, desenvolver algoritmos e definir os parâmetros éticos de sua aplicação.

Segurança Internacional e Armas Autônomas

Entre as múltiplas dimensões da Inteligência Artificial, a segurança internacional é, talvez, a mais sensível. A aplicação de sistemas autônomos em atividades militares e de defesa representa uma transformação profunda na forma de conduzir conflitos e gerir ameaças. O desenvolvimento de armas capazes de operar sem intervenção humana direta, como os drones com IA realizando ataques, sistemas de vigilância automatizados e programas de decisão bélica baseados em algoritmos, tudo isso inaugura uma nova era na história da guerra.

Essa tendência tem alimentado o que muitos analistas chamam de corrida armamentista algorítmica. As grandes potências investem em sistemas de IA voltados à vigilância, à guerra cibernética e à capacidade de resposta automatizada. O risco é que o avanço tecnológico ocorra mais rapidamente do que os debates éticos e normativos capazes de regulá-lo.

A ausência de mecanismos internacionais de controle sobre armas autônomas agrava o cenário. Embora existam esforços no âmbito das Nações Unidas e de outras instituições multilaterais, ainda não há consenso sobre os limites aceitáveis do uso da IA em operações militares. A dificuldade de definir responsabilidades em casos de falhas ou danos, bem como o potencial para violações do direito internacional humanitário, torna urgente o estabelecimento de normas específicas para esse tipo de tecnologia.

Além da dimensão bélica, a IA também impacta o campo da segurança cibernética. Algoritmos são hoje utilizados tanto na defesa quanto no ataque a sistemas de informação. Estados e atores não estatais exploram vulnerabilidades digitais com o auxílio de inteligência artificial para conduzir operações de desinformação, espionagem ou sabotagem. A manipulação automatizada de dados e a difusão de conteúdos falsos podem desestabilizar governos, influenciar eleições e minar a confiança nas instituições democráticas.

A resposta a esses desafios requer mais do que o fortalecimento das capacidades nacionais de defesa. É indispensável a criação de mecanismos internacionais de cooperação e transparência, capazes de prevenir o uso indevido da IA e de promover uma governança ética da segurança tecnológica. Assim como a energia nuclear demandou tratados e salvaguardas internacionais, a IA aplicada à guerra exige um novo regime normativo que limite seus riscos e preserve os princípios humanitários fundamentais.

Inteligência Artificial, Diplomacia e Cooperação Internacional

A Inteligência Artificial também tem potencial para reconfigurar a prática diplomática e ampliar a capacidade dos Estados e das organizações internacionais de compreender e atuar sobre a realidade internacional. O uso de algoritmos, análise de dados e sistemas de previsão pode contribuir para uma diplomacia mais informada, ágil e estratégica.

Ferramentas de IA já são utilizadas na coleta e interpretação de informações provenientes de diferentes fontes, de redes sociais, relatórios, imagens de satélite a bancos de dados econômicos, permitindo antecipar crises, monitorar conflitos e mapear tendências políticas e comerciais. Esse tipo de análise preditiva tem se mostrado especialmente útil em processos de mediação e prevenção de crises, ampliando a capacidade de resposta de governos e organismos multilaterais.

A IA também tem aplicações diretas na diplomacia pública e na comunicação internacional. Sistemas de tradução automática, assistentes virtuais e plataformas de monitoramento digital permitem que diplomatas compreendam melhor percepções de opinião pública, identifiquem desinformação e estabeleçam canais de diálogo mais amplos e acessíveis. Em muitos casos, esses instrumentos tornam-se parte da rotina das chancelarias, contribuindo para o fortalecimento da diplomacia digital.

Ao mesmo tempo, o uso diplomático da IA levanta questões importantes sobre ética, transparência e soberania da informação. A capacidade de analisar ou influenciar comportamentos em escala massiva pode gerar desequilíbrios entre os Estados que dominam as tecnologias e aqueles que delas dependem. Por isso, cresce o debate sobre a necessidade de princípios internacionais de confiança e responsabilidade no uso da IA, capazes de garantir que a automação sirva à cooperação, e não à manipulação política.

Diversos fóruns multilaterais já discutem caminhos para essa governança. A União Europeia, o G7 e as Nações Unidas têm promovido iniciativas voltadas ao estabelecimento de parâmetros éticos, intercâmbio de boas práticas e fortalecimento de capacidades em países em desenvolvimento. A criação de organismos especializados ou de acordos internacionais sobre IA aparece cada vez mais como uma necessidade diante da interdependência tecnológica.

A cooperação internacional, nesse contexto, é essencial não apenas para evitar riscos, mas também para distribuir os benefícios da inovação de forma mais equilibrada. A IA pode ser um instrumento de desenvolvimento, permitindo avanços em áreas como saúde, educação, meio ambiente e gestão de crises humanitárias. O desafio consiste em assegurar que essas possibilidades não fiquem restritas às potências tecnológicas, mas sejam orientadas por valores de solidariedade, sustentabilidade e justiça internacional.

Ética e Governança Internacional da Inteligência Artificial

A expansão da Inteligência Artificial colocou a comunidade internacional diante de um dos maiores desafios éticos do século XXI: como regular e orientar o desenvolvimento de tecnologias que possuem enorme potencial de transformação, mas também a capacidade de ampliar desigualdades, manipular informações e ameaçar direitos fundamentais.

O uso da IA em contextos diplomáticos, militares e econômicos exige atenção redobrada quanto à transparência, à responsabilidade e ao respeito aos princípios do direito internacional. Um dos principais riscos está na reprodução de vieses e discriminações presentes nos dados utilizados para treinar algoritmos. Quando aplicados a políticas públicas ou processos decisórios, esses vieses podem consolidar desigualdades estruturais e comprometer a imparcialidade das instituições.

Além disso, a crescente automação das decisões levanta dúvidas sobre a responsabilidade moral e jurídica. Em caso de erro, violação de direitos ou uso indevido de sistemas autônomos, quem deve ser responsabilizado: o programador, o Estado, a empresa ou a própria máquina? Esse é um ponto ainda em aberto na literatura e nos fóruns internacionais.

A governança da IA vem sendo debatida em diversas instâncias multilaterais. As Nações Unidas, por meio de suas agências e conselhos especializados, têm promovido diálogos sobre a criação de normas internacionais que estabeleçam limites éticos e padrões de segurança. Há também iniciativas regionais, como a da União Europeia, que propõe um modelo de regulação baseado em direitos humanos e no princípio da precaução.

Outra preocupação crescente diz respeito à desigualdade tecnológica. A concentração do conhecimento, das patentes e das capacidades computacionais em poucos países reforça a divisão entre centros de poder tecnológico e regiões dependentes. Sem mecanismos de cooperação e transferência de tecnologia, há o risco de uma nova forma de assimetria internacional, agora não mais apenas econômica ou militar, mas algorítmica.

A ética da Inteligência Artificial, portanto, deve ser entendida como uma questão de política internacional. Não se trata apenas de evitar abusos, mas de construir uma governança inclusiva, que reflita valores universais e contemple a diversidade de perspectivas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Garantir o uso responsável da IA é, em última instância, uma forma de preservar a própria legitimidade das instituições internacionais e a confiança entre os Estados.

O Profissional de Relações Internacionais na Era da Inteligência Artificial

A incorporação da Inteligência Artificial aos processos de decisão e de formulação de políticas transforma também o perfil e as competências exigidas dos profissionais de Relações Internacionais. A capacidade de interpretar dados, compreender tecnologias emergentes e dialogar com diferentes áreas do conhecimento torna-se uma exigência crescente para quem atua na análise de conjuntura, na diplomacia e na gestão internacional.

O internacionalista do século XXI precisa conciliar duas dimensões complementares: o domínio da leitura política e contextual, que depende da experiência humana e da compreensão das dinâmicas de poder, e o uso estratégico de ferramentas tecnológicas, que ampliam a capacidade analítica e a velocidade de resposta.

A IA pode apoiar o trabalho de diplomatas, pesquisadores e analistas ao gerar previsões, sintetizar informações e identificar padrões complexos. No entanto, o julgamento humano continua indispensável para interpretar os resultados, compreender nuances culturais e avaliar implicações políticas que os algoritmos não captam. A interpretação crítica e a sensibilidade ética tornam-se diferenciais decisivos em um ambiente de crescente automatização.

Nesse sentido, o ensino e a prática das Relações Internacionais devem evoluir para incluir competências relacionadas à inteligência estratégica, análise de dados, ciberpolítica e ética tecnológica. Essas habilidades complementam a formação clássica, preparando o profissional para atuar em um mundo em que a diplomacia e a governança internacional são cada vez mais mediadas por sistemas inteligentes.

A IA não substitui o papel do internacionalista. Pelo contrário, amplia o campo de atuação e exige uma visão mais interdisciplinar, capaz de integrar política, tecnologia e sociedade. Cabe ao profissional de Relações Internacionais compreender a linguagem dos algoritmos sem perder de vista o essencial: que, por trás de cada decisão automatizada, há sempre uma disputa de valores, interesses e narrativas.

Considerações Finais

A Inteligência Artificial não é apenas mais uma inovação tecnológica: trata-se de um fenômeno estruturante, capaz de remodelar as relações de poder, redefinir fronteiras entre segurança e soberania e introduzir novas formas de interação entre Estados, empresas e indivíduos. Sua incorporação às práticas econômicas, diplomáticas e militares está transformando o modo como o sistema internacional se organiza, ao mesmo tempo em que amplia as desigualdades e os dilemas éticos que desafiam a governança internacional.

Os países que compreenderem o caráter político da IA terão condições de atuar de forma estratégica nessa nova fase da história internacional. Isso exige políticas externas capazes de equilibrar inovação e responsabilidade, promover regulações internacionais, proteger direitos fundamentais e incentivar a cooperação científica e tecnológica. A ausência de coordenação ou de marcos éticos compartilhados tende a aprofundar assimetrias e alimentar rivalidades que ultrapassam os limites tradicionais da competição entre Estados.

Ao mesmo tempo, o avanço da IA evidencia que o elemento humano permanece central. Nenhum algoritmo substitui a interpretação política, a capacidade de negociação ou a sensibilidade ética que caracterizam o trabalho diplomático e a análise de conjuntura. A tecnologia pode ampliar o alcance e a eficiência da ação internacional, mas são as pessoas, com suas escolhas e valores, que determinam o rumo que ela seguirá.

O desafio, portanto, não é apenas desenvolver sistemas inteligentes, mas construir instituições igualmente inteligentes, capazes de integrar a IA à prática das Relações Internacionais de modo ético, transparente e cooperativo. Essa integração passa pela formação de profissionais aptos a compreender tanto as dimensões técnicas da tecnologia quanto suas implicações políticas e estratégicas.

A Inteligência Artificial inaugura uma nova etapa da política internacional: um tempo em que o poder se mede também pela capacidade de processar informações e transformar dados em decisões. Enfrentar seus riscos e aproveitar suas oportunidades exigirá uma diplomacia preparada para o século XXI, uma diplomacia que una conhecimento humano e tecnologia, razão e prudência, inovação e responsabilidade.

9

Curso de Análise de Conjuntura

A ESRI conta com um curso sobre análise de risco e de conjuntura. Para fazer a sua inscrições, clique aqui.

ESRI Comunicação
ESRI Comunicação

ESRI - Conteúdo para você entender as possibilidades do campo das Relações Internacionais. Dicas de filmes, livros, carreira e muito mais.

Related Posts